Prenhe e balofa, sua mãe passara vários
dias à procura de uma presa sem nada conseguir, até que deparou com um
rebanho de cabras selvagens. Estava faminta, o que explica a violência de sua investida. O esforço do ataque precipitou o
parto e ela acabou morrendo de esgotamento. As cabras, que haviam se dispersado,
retornaram ao lugar e lá encontraram um filhote de tigre choramingando ao lado de sua mãe. Levadas pela
compaixão maternal adotaram a débil criatura;
amamentaram-na junto com suas próprias crias e dela cuidaram
ternamente.
O animal cresceu e sobreveio a recompensa pelos cuidados dispensados, pois o
pequeno companheiro aprendeu a linguagem das cabras, adaptou sua voz àquele som
suave e mostrou tanto afeto quanto qualquer cabrito. A princípio teve alguma
dificuldade para mastigar com seus dentes pontiagudos as tenras folhas do
pasto, mas logo se acostumou. A dieta vegetariano o mantinha enfraquecido,
conferindo ao seu temperamento uma notável doçura.
Certa noite - quando o órfão, crescido
entre as cabras, já havia alcançado a idade da razão - o rebanho foi
atacado, desta vez por um velho e feroz tigre. As cabras se dispersaram,
porém o jovem permaneceu onde estava, sem
medo ainda que surpreso. Achando-se face a face com a terrível criatura da
selva, fitou-o estupefato. Passado o primeiro impacto, começa a
tomar consciência de si. Desamparado, berra, arranca folhas de pasto e se põe a mastigar, ante o
olhar perplexo do outro. De repente, o poderoso intruso pergunta:
_ Que fazes aqui entre
as cabras?! Que estás mastigando?!
A resposta foi um berro. O outro,
indignado, disse num rugido:
_ Por que emites este som estúpido?!E antes que o pequeno pudesse responder,
apanhou-o pelo cangote e o sacudiu como se quisesse fazê-lo recobrar a
lucidez.
O tigre da selva carregou o assustado
animal até um lago próximo, soltando-o na margem e obrigando-o a olhar para a superfície espelhada da água, então
iluminada pela lua.
_ Vê estas duas
imagens! Não são semelhantes? Tens a cara típica de um tigre, é como a minha.
Por que te iludes pensando
seres um cabrito? Por que berras? Por que mastigas pasto?!
O tigrinho, incapaz
de responder, continuava a olhar espantado comparando as duas imagens refletidas.
Inquieto, apoiou-se numa e logo noutra pata, e lançou um grito de aflitiva
incerteza. A velha fera novamente o carregou, porém agora até seu covil, onde lhe ofereceu um pedaço
de carne crua e sangrenta, sobra de uma
refeição anterior. Ante a inusitada visão, o jovem tremeu de repugnância, mas o
velho, ignorando o fraco gesto de protesto, ordenou rudemente:
_ Come! Engole!
O outro resistiu, porém a horripilante
carne foi forçada a passar entre seus dentes; o tigre vigiava atentamente
seu aprendiz que tentava mastigar e preparava-se para engolir. Sua não
familiaridade com a consistência da carne
causava-lhe certa dificuldade, e estava prestes a emitir outro débil berro
quando começou a experimentar o gosto do sangue. Excitado, devorou
o restante com avidez, sentindo um prazer incomum à medida que o novo alimento descia-lhe pela garganta e atingia o
estômago. Uma força estranha e quente irradiava de suas entranhas trazendo-lhe
uma sensação eufórica e embriagadora. Estalou a língua, lambeu o focinho satisfeito e, erguendo-se, deu um largo
bocejo como se estivesse despertando de uma longa noite de sono - uma
noite que o manteve sob feitiço por anos e anos. Espreguiçando-se, arqueou
as costas, estendeu e abriu as garras. Sua cauda fustigava o solo e, de
súbito, irrompeu de sua garganta o triunfal e aterrorizante rugido de um tigre. O inflexível mestre, que
estivera observando de perto, sentia-se recompensado. A transformação, de fato,
acontecera. Ao cessar o rugido, perguntou severamente:
_ Agora sabes quem realmente és?
E para completar a iniciação de seu jovem
discípulo no saber secreto de sua própria e verdadeira natureza,acrescentou:
_ Vem! Vamos caçar juntos pela selva.
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